A Cidade PreOcupada
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Na primeira quinzena de Julho teve lugar a décima edição do festival Cidade PreOcupada, organizado pelas Oficinas do Convento, desta vez concentrada em 15 dias intensos. O festival trouxe oficinas, concertos, performances, residências artísticas e exposições, e aventurou-se para fora da cidade, abrindo o programa em Casa Branca.
Nélia Marquez Martins, produtora da associação organizadora, relembra como o festival nasceu do Festival do Ananil, que teve lugar de 2005 a 2008. Eventos como estes são, para as Oficinas do Convento, momentos para apresentar ao público o que foi sendo feito e acolhido pela associação, e para trazer propostas artísticas e musicais relevantes a Montemor. A Nélia destaca que os eventos não só têm lugar no Convento de S. Francisco, povoando a cidade de música, teatro, instalações artísticas, oficinas e mais, estreitando ao mesmo tempo os laços com outras estruturas locais. O nome do festival tem esta dupla leitura, de ocupação de espaços públicos e preocupação com a cidade e o envolvimento dos seus habitantes.
Desta edição a Nélia destaca os eventos em Casa Branca (30 de Junho, ver adiante) e a Noite de Fados e Mornas (11 de Julho), em que o cabo-verdiano Jon Luz e os fadistas Inês Villa-Lobos, António Villa-Lobos e Helder Azinheirinha actuaram num cenário de casa de fados.
Este foi o momento de celebrar e relembrar as relações que a associação tem vindo a criar ao longo dos anos entre Montemor-o-Novo e Cabo-Verde. Saboreámos pratos típicos, bebidas e doces portugueses e cabo-verdianos, ouvimos Mornas e Fados e ainda Mornas com Fados e Fados com Mornas. A generosidades dos artistas convidados, permitiu que todos tocassem em conjunto e partilhassem as suas influências. Contámos com mais de oitenta comensais e outros tantos que apareceram depois para os concertos. Foi uma oportunidade de encher o claustro do convento e de cantarmos e dançarmos todos juntos.
Falámos também com o António Orvalho, residente muito recente de Casa Branca, sobre os eventos que lá tiveram lugar. O António conta-nos que como a localidade, na freguesia de Santiago do Escoural, nasceu como bairro ferroviário, mas depois foi perdendo população, contando actualmente com uns escassos 90 habitantes. “Neste momento Casa Branca é uma terra de passagens, tanto de quem parte ou chega de comboio ou de quem passa vindo de Alcáçovas ou Montemor.” E no entanto é a única localidade montemorense que conta com paragem de comboios, a um passo de Almada e Lisboa. As Oficinas do Convento propuseram por isso, em conjunto com a Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Casa Branca, “Pensar um Caso em Branco” e dar visibilidade a este local meio esquecido. Uma reflexão partilhada entre interessados e habitantes, seguido de uma grande sardinhada e um Encontro de Guitarras com Chico Lobo (Brasil) e Pedro Mestre (Portugal). De acordo com o António, os residentes de Casa Branca receberem o evento animados e também algo intrigados. “O que ficou e que acho bonito é o prazer que as pessoas da Casa Branca sentiram neste dia. Pessoas que no dia seguinte me disseram que gostaram muito do dia anterior e que seria bonito repetir. O evento trouxe alegria e partilha à Casa Branca. A médio prazo penso que irá trazer mais outros benefícios à localidade.”
Enquanto às artes plásticas, esteve em residência a artista Maja Escher, que instalou, sob o título “Qual é coisa qual é ela – quê quá ê sá?”, o seu laboratório de cerâmica colaborativa na Sala do Capítulo do Convento de S. Francisco. Aí foi recebendo quem quisesse ver e partilhar o que sabe sobre a água e chuva. Falou com agricultores e biólogos, e sobretudo com quem simplesmente cá vive, e em geral não se esqueceu da seca do ano passado. Os resultados foram preenchendo a Sala do Capítulo: frases, desenhos, curiosos mecanismos de transporte de água, construções de canas e fios. De acordo com a artista são os primeiros esboços para uma Máquina de Chuva, projecto ainda à procura de definição. Por entre as metáforas e os engenhos populares, as dádivas e a sabedoria escondida nos ditados e adivinhas a Maja sabe que a questão da água – da nossa sustentabilidade sobre este solo – está, em última instância, nas nossas mãos.
De 7 a 21 de Julho houve ainda uma exposição integrada no Festival na Galeria Municipal, que mostrou obras em cerâmica e uma instalação, tudo resultado de residências que ocorreram nas Oficinas do Convento.
A instalação ()3, de João Cristóvão Leitão e João Pedro Fonseca, propunha um complexo jogo de imagens em torno de um cubo suspenso, em que uma filmagem do observador passante era projectada sobre um espelho estilhaçado, reenviando a nossa imagem fragmentada para as quatro paredes da sala.
Esther Garcia Urtiga apresentou as suas Matres, reinterpretações de uma figura mitológica dos cultos ibéricos pré-cristãos representada por três mulheres com um peito nu que representa a maternidade e a segurança. Abundam símbolos de difícil leitura: rabos de peixe, uma boca com ovo, cabelos, rãs, uma cabeça de galo, falos, serpentes, tudo a insinuar uma sensualidade maternal sempre a ponto de se dissolver num mundo animal mais antigo. São obras em cerâmica primorosamente trabalhadas, apresentadas sempre em par: uma vidrada em verde, outra com padrões desenhados em engobe (barro colorido), sobrepondo imagem a imagem.
Manuel Portugal encheu outra sala da Galeria Municipal com uma procissão de 60 Bichos Vidrados cantando hosanas, na sua própria descrição. Pequeno jardim de monstros domésticos, híbridos de todo o tipo de animais e muito de humano que, pelo menos a este observador, pareceram uma bem-humorada réplica à Romaria de São Isidro de Francisco de Goya.
Eric Madec, por fim, encheu uma sala e o claustro com as suas Dancing Figures, peças de chão, plinto, canto e parede que desenham os gestos tensos da dança e do sexo. Mais ou menos antropomórficas, exploram todo o potencial da plasticidade da cerâmica, das texturas e cores das diferentes pastas utilizadas, de vidrados que salpicam uma superfície muito trabalhado, como se fosse uma pele vivida. Tem um ar de inacabado, como se fosse só um momento na vida da peça, e deixam entender, por trás da dureza das formas, uma consciência muito própria dos gestos do corpo no espaço, do frágil equilíbrio com que nos movemos por este mundo.